quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O papel espacial do tempo humano (parte 1, 2° edição)


O tempo é uma noção impregnada de humanidade. As pessoas, ao começar a operar o espaço geográfico e ao transformá-lo através do trabalho, passam a ter uma necessidade crescente de estabelecer maneiras, formas e critérios para melhor compreender a natureza. E para realizar esta tarefa, criação de parâmetros temporais é um importante subsídio.

A atual fase do capitalismo, que aqui denomino de globalização financeira (e financista), vem, desde o final da década de 60, mostrando seus novos estratagemas de acumulação do capital empreendidos pela grande burguesia internacional. Um destes estratagemas consiste em um controle ainda mais intensificado do tempo de grandes parcelas da população que interagem na economia capitalista. O resultado tem sido uma vivência temporal rápida, cronometrada (Cróhnos, deus grego do tempo), baseada nos minutos e nos segundos e tornando a nossa vivência espacial uma prisioneira à beira da paranóia do relógio que impregna a consciência individual e, como é de costume, parece programar a nossa percepção para que possamos absorver essa realidade como um dado irrevogável. Quando conseguimos parar  e pensar um pouco, meu deus: não estamos mais nos alimentamos direito, estamos seguidamente estressados, não mais conhecemos e interagimos sequer com nossos vizinhos e ainda continuamos trabalhando  mesmo após  a jornada "normal" de trabalho quando, em nossa residência, colocamos nossa mente para racionalizar  o trabalho para o dia seguinte. Pior: sem receber mais por isso. Pior ainda: para fornecer o suporte que a acumulação capitalista necessita até que, tcham tcham tcham tcham, uma nova crise econômica assole grande parte da população. Eu disse grande parte da população e não toda a população! Sabemos que grande parte do terráqueos nunca deixou de boiar na crise (social) que lhes é permanente. São violados cotidianamente em seus direitos básicos de reprodução material e imaterial. Vivem na condição de refugo humano como sentencia Zigmunt Bauman. A outra parte, uma meia-dúzia de players globais: os 200 homens mais ricos do mundo possuem mais dinheiro que os 2,5 bilhões de pessoas mais pobres da Terra (e que diz é a Veja, risos, ed1,n°761, 2002). Para estes agentes globais, a crise quase nada significa. Conhecem como ninguém a regras do jogo e possuem "bola de cristal". São detentores de múltiplas aplicações em vários ramos da economia financeira e, para garantir, praticam um lobie avassalador sobre ministérios estratégicos de governos para que estes utilizem os recursos sociais (impostos) para restituir eventuais perdas. Tudo em nome da responsabilidade técnica, "claro"! Basta ler nos jornais as ajudas emergenciais do Estado, outrora imprestável, na cifra das centenas de bilhões de dólares para as mesmas empresas financeiras que geraram a crise por operar a economia mundial como se a mesma fosse um cassino de um paraíso fiscal.

Mas sempre foi assim? Como tudo isso começou?

Acredita-se que o tempo começou a ser medido há cerca de 20 mil anos. E isso se deu quando a humanidade, ainda em estágio primitivo, onde a natureza era a suprema dominadora das ações humanas, passou a perceber e observar certos fenômenos naturais dotados de repetitividade, de caráter cíclico e regular. Além das marés, percebeu-se o movimento do Sol sobre a abóbada celeste indicando a sucessão habitual dos períodos diurnos e noturnos, fruto do movimento terrestre de rotação, surgindo assim a primeira concepção temporal natural, a mais evidente de todas: o dia. Não muito tempo depois também fora percebida a órbita lunar ao redor da Terra, o que permitiu forjar a concepção de mês. E mais: a observação de suas fases conjugada com marcações em gravetos e ossos marcando o número de dias entra cada uma das suas fases, pode ter originado o nascimento da concepção de semana (do latim septimana, sete manhãs).





Com o advento da agricultura, outro parâmetro orbital começa a se fazer sentir. Trata-se da translação (movimento orbital executado pelo nosso planeta ao redor do Sol, a estrela do nosso sistema solar) que, atenção (!), àquela época obviamente não estava presente como a representação orbital que temos hoje e que fora alvo das leis da mecânica celeste dentro de uma concepção heliocêntrica (Copérnico, Tycho Brahe, Bruno, Kepler, Galileu, Newton). A translação era percebida através das configurações das constelações no céu bem como das alturas solares (inclinação dos raios solares em relação ao local). Ambas mostravam uma repetição cíclica regular. As constelações, por exemplo, sofrem um deslocamento progressivo no céu para oeste até retornarem ao mesmo quando completado 1 ciclo translativo. A inclinação dos raios solares para um horário do dia (vou usar o meio-dia) sofre uma variação de cerca de 47° ao longo deste ciclo entre o ponto mais alto do Sol no céu (solstício de verão) e o mais baixo (solstício de inverno). E tudo isso ganha imensa significação na medida em que possui uma intima relação com o comportamento cíclico meteorológico (temperaturas altas e baixas, chuva e estiagem) e das consequentes cheias e baixas dos corpos fluviais, por exemplo, tão importantes para a prática agrícola. Estava traçado o caminho para desenvolver a noção de estações e de ano.





Parece que a preocupação com a medição do tempo, seja por motivos religiosos, agrícolas ou de estudo dos fenômenos celestes assolou todos os povos antigos, nascendo assim, aos poucos, certos conhecimentos como a matemática, a geometria, a astrologia e a astronomia. É notável que a temporalidade tal qual se entende atualmente nasceu naqueles tempos primitivos como um fruto da percepção e da observação daquilo que se acontecia no céu. Não é por acaso que o panteão de muitos povos antigos é repleto representações celestes que se fazem divinas.

Da preocupação de compreender melhor a relação cognitiva que os povos antigos tinham com o céu e com o que nele se passa, nasceu durante na década de 1950 um ramo cientifico denominado arqueoastronomia. Inicia-se então um frutífero estudo sobre monumentos megalíticos neolíticos que, como parece, buscavam fazer uso de alinhamentos astronômicos evidenciando grandes habilidades matemáticas e de engenharia como ficou explicito em casos como, por exemplo, de Stonehengen (do inglês stone, pedra e hengen, eixo), ao sul da Inglaterra, o mais famoso, porém não o único monumento megalítico,  onde a disposição de monólitos esta de tal forma que permite a passagem de um feixe de luz e sua chega ao centro do circulo quando do nascer do Sol na data do solstício de verão para o Hemisfério norte.




Mas todo este desenvolvimento das concepções de temporalidade somente poderá acontecer quando a espécie Homo sapiens sapiens desenvolve a sua capacidade cerebral de comunicação criando sistemas de linguagem que, com o tempo, se tornaram mais complexos. Entre eles, a escrita. Aos poucos então, a noção de tempo vai ficando cada vez menos abstrata e mais objetiva e concreta através de formas de medição, fracionamento e sistematização do tempo como, por exemplo, os calendários.

Todo calendário consiste em um sistema de contagem e organização dos dias para o período anual. Ele nasce relacionado a uma organização da temporalidade sócio-espacial onde a agricultura era a fonte da reprodução material e a religiosidade era um fator fundamental básico de explicação do mundo. Ela permeava todos os poros daquelas sociedades que eram totalmente dependentes de uma natureza que era ainda muito pouco compreendida. Neste sentido, podemos dizer que, cada calendário é simultaneamente importante (a) pela carga de acumulação de conhecimento que ela demanda (principalmente astronômico e matemático) e também pela (b) carga de significados históricos e culturais que as datas possuem constituindo assim, uma importante fonte de compreensão da construção da memória coletiva daquele povo.

Jacques Le Goff, historiador, coloca que a ordenação do tempo através empreendida com tentativa de mensuração, faz parte de um conjunto de evidencias da busca empreendida pela humanidade pelo controle da natureza. “O calendário torna-se, nesta visão, um dos grandes emblemas e instrumento do poder; passível do controle dos detentores do poder como reis, padres ou revolucionários” (LE GOFF, 1990, p. 478).

Como não existe calendário perfeito, cada sociedade buscará organizar seu calendário de maneira que as suas discrepâncias sejam diluídas no maior número de anos possíveis.  A organização dos calendários tem por base três ciclos fundamentais: rotação e translação terrestres e a lunação (translação lunar).

O protótipo actual de calendário lunar é o calendário islâmico; do calendário solar é o calendário gregoriano; do calendário luni-solar é o calendário israelita. Mas também o calendário gregoriano conserva, de certo modo, uma base luni-solar no que diz respeito às regras para a determinação da data da Páscoa, a que procuraremos mais adiante fazer referência. (Marques, 2000)

Para efeitos de exatidão, pouco importa a organização interna dos calendários (o número de meses e de dias que estes meses possuem). O grande desafio era conseguir encaixar as 24 horas do dia (dia solar médio) junto a um valor inexato: o ano sideral (tempo entre duas passagens sucessivas de uma estrela sobre um determinado meridiano), de 365d 06h 09m 09,8s (ou 365,2564 dias solares médios). Mais tarde descobriu-se o ano solar, isto é, o tempo entre duas passagens sucessivas do Sol sobre um determinado meridiano, de 365d 5h 48m 45,3s (ou 365,24 dias solares médios). O ano solar é mais curto devido ao movimento de precessão dos equinócios responsável por fazer com que a entrada do equinócio na órbita terrestre aconteça antes devido ao seu retrocesso em cerca de 50 segundos de ângulo por ano. É justamente o ano solar que será o mais usado pelos calendários.

Os egípcios, por volta de 5000 a.C, talvez tenham sido os primeiros a chegar em um ano com 365 dias (2 meses de 30 dias e 5 dias adicionais no fim de cada ano), o que gerava um atraso anual de 6 horas. Sendo assim, a cada ano, as estações nasciam 6 horas mais cedo e assim levariam 1.461 anos para nascerem novamente na data original.

Uma tentativa de consertar este atraso veio com o Calendário Juliano, quando da reforma empreendida por Júlio César. O ano, então concebido como 365,25 dias (11m 4s mais longo que o ano solar), passou a ter então 365 dias e um dia a mais no quarto sendo este quarto ano, o famoso ano bissexto. Seu nome deve-se ao seguinte: o sexto dia antes do primeiro dia do mês seguinte (dia este chamados de calendas) fora duplicado. Por este calendário, em 128 anos, um dia seria acumulado. As discrepâncias deste calendário complicavam a posição da Igreja Católica, senhora ideológica dos tempos medievais, na medida em que uma data tão sagrada como a Páscoa estivesse nascendo em 1582 (ano da reforma gregoriana), cerca de 10 dias antes do Equinócio do dia 21 de março. O problema já havia sendo tratado a mais de 100 anos nos Concílios de Constança (1414), Basiléia (1436 e 1439), S. João de Latrão (1511 a 1515), de Trento (1545 a 1563).

O Calendário Gregoriano entre outras modificações, corrigiu a medição do ano solar, estimando que este durava o valor já citado e usou o artifício de pular 10 dias para fazer com que a data da Páscoa retornasse ao 21 de Março. Mas o principal recurso utilizado deu-se em relação ao ano bissexto. Este (agora sendo o dia 29 de fevereiro) somente seria utilizado nos anos múltiplos de 400. De acordo com Manuel Nunes Marques “a duração do ano gregoriano é, em média, de 365d 05h 49m 12 s, isto é, tem atualmente mais 27s do que o ano trópico. A acumulação desta diferença ao longo do tempo representará um dia em cada 3000 anos”.

O Calendário Gregoriano é o mais difundido atualmente no mundo e mesmo entre as nações que não o adotam, fazem uso no âmbito das relações internacionais, uma decorrência do caráter globalizante do capitalismo que, neste sentido, unificou o tempo mundial. Mas durante os tempos medievais a configuração da “geopolítica das almas” impedia que a reforma gregoriana ganhasse territórios de maneira rápida e isenta de resistências:

Nos países protestantes a recusa foi mais longa. (...) "Os protestantes, dizia Kepler, preferem antes estar em desacordo com o Sol do que de acordo com o Papa". Os protestantes dos Países Baixos, da Alemanha e da Suíça só por volta de 1700 aceitaram o novo calendário. (...) A Inglaterra e a Suécia só o fizeram em 1752; foi preciso então sacrificar 11 dias, visto que tinham considerado 1700 como bissexto.
Os russos, gregos, turcos e, duma maneira geral, os povos de religião ortodoxa, conservaram o calendário juliano até ao princípio deste século. Como tinham considerado bissextos os anos de 1700, 1800 e 1900, a diferença era já de 13 dias. A URSS adotou o calendário gregoriano em 1918, a Grécia em 1923 e a Turquia em 1926. (MARQUES, 2000)

Mas e a noção de fracionamento do dia que levará a humanidade à criação das concepções de hora, de minuto, de segundo? Ela irá começar aos poucos. Não era a preocupação principal dos primeiros povos que eram agrícolas e em estágio técnico muito rudimentar, o que gerava neles uma percepção de temporalidade muito mais lenta e, portando, uma preocupação com períodos mais longos de tempo. Mas a marcação das horas já dava os primeiros passos com os chamados relógios solares (gnomon) que são baseados na evolução diária das sombras do Sol geradas por um bastão vertical fincado no chão. Além do incômodo de não poder ter certeza das horas em em dias nublados, a imprecisão destes relógios era evidente, pois sabe-se que o Sol, ao longo de um ano, como efeito de a órbita terrestre (e de todos os corpos envolvidos em sistemas orbitais) não ser circular e sim elíptica, fazendo com que a velocidade de translação seja variável (entre 30,29 e 29,29 km/s), o que gera efeitos de atraso e adiantamento dos posições solares no céu ao longo do ano. Tudo isso fora descrito pelo astrônomo alemão Kepler e suas famosas leis. Então, diante desta imprecisão, aos poucos, os relógios evoluíram. O Sol deixa aos poucos de ser o parâmetro através da utilização de instrumentos que utilizavam o escoamento (de líquido como a  Clepsidra e de areia como a ampulheta, datada de 250 d.C, para ficar exemplos de maior fama) e de queima (de velas, no caso camadas mais nobres, e cordas entre os mais humildes) nos tempos medievais tentando encontrar nestes processos alguma regularidade para fins de medição temporal. Destes tipos de relógios, a evolução técnica nos permitiu a confecção  dos relógios mecânicos no século XIV. No século XX passamos pelos de quartzo e chegamos ao atômico de Césio-133. Mas isso é um assunto para uma segunda parte.



Até o final do período histórico conhecido na Europa como Idade Média, as maiores preocupações com o tempo estavam na busca de um calendário coerente. Isso se explica pelos ritmos dados pela atividade econômica baseada na agricultura ainda muito rudimentar e dependente dos ritmos naturais, a um modo de produção pré-capitalista e a um predomínio cultural da Igreja católica que ditava um calendário baseado em datas sagradas.

Os ritmos da vida eram dados pela atividade agrícola diária que dependia da duração do fotoperíodo (período com luz solar) ou então dos sinos da igreja. No mundo medieval o tempo era ditado pelas obrigações litúrgicas e de trabalho, estas últimas impostas pela natureza. É um tempo impreciso e a-racional. Não muito diferente dos tempos pretéritos em localidades mais distantes da vida urbana e comercial. Não podemos esquecer que esse tipo de vivencia espacial ainda existe, inclusive em muitos rincões brasileiros.

Com o renascimento comercial, surge então, a partir da burguesia, a noção de que tempo é dinheiro e que, por isso mesmo, deve ser mensurável, racionalizado e bem administrado para melhor gerir uma sem número de atividades ligadas ao nascimento do capitalismo: comércio, navegação, operações bancárias, fabris, datas contratuais, o próprio trabalho que passa a ser dotado de um ritmo, etc.

Álvaro Rodrigo Pinto recupera em seu trabalho que a burguesia usava o período da tarde para o ócio, já que no período da manhã ela negava o ócio, ou seja, realizava seus negócios. É uma noção de tempo que se opunha àquela noção medieval católica de uma temporalidade ligada à bíblica e a um mundo rural isolado e que, ao colocar o tempo como pertencente a Deus, tornava o empréstimo a juros, conhecido como usura, como um pecado na medida em que essa usura era considerada uma venda do tempo divino já que o usuário lucra com o tempo que outra pessoa gastou para lhe fazer render os juros devidos.

O afloramento desta nova noção de tempo culmina com a criação do relógio mecânico no século XIV que significou uma revolução na relação entre o homem e a sua organização no que diz respeito em relação aos ritmos naturais, o que contribuiu para o desenvolvimento de uma mentalidade quantitativa em relação à vida. Esta mesma mentalidade é geratriz de uma rigidez disciplinar amplamente utilizada na extração de mais-valia e na organização individual dos homens que passam assim, a se tornarem uma propriedade muito mais do tempo do que do próprio espaço natural. Está em emergência uma nova forma de as sociedades se organizarem e pensarem que pode ser chamada de mecanicista pela necessidade de ver o tempo como tendo que ser a todo momento medido, visto de maneira sempre linear e progressiva, o que é acentuado pelos periódicos.
Porém, os primeiros relógios terão uma importância muito mais de ornamentação e simbolismo já que não eram lá muito precisos. Relógios eram motivo de orgulho e status aos habitantes das cidades que os possuíssem ou à certos homens que tinham sua propriedade, embora não havia a noção de hora nacional que irá nascer aos poucos durante a idade moderna. Cada cidade passa a ter a sua hora legal. Então aos poucos, com relógios mais confiáveis, o homem não mais precisará olhar a posição dos astros celestes na medição do tempo.
As grandes navegações trarão a necessidade de ser calculada a posição das embarcações em alto mar. O cálculo das latitudes era conseguido com certa precisão, mas o das longitudes dependeu a criação do relógio mais preciso só inventado no século XVIII por um inglês.

Aguarde... em alguns dias colocarei a segunda parte.



bibliografia principal

- HISTÓRIA, TEMPO E HISTÓRIA. Maria Inez Turazzi e Carmen Teresa Gabriel. Projeto Arariba.
- Origem e evolução do nosso calendário. Manuel Nunes Marques (http://www.mat.uc.pt/~helios/Mestre/H01orige.htm)

- Da Usura ao Desperdício. O Tempo de um Pecado. Álvaro Rodrigues Pinto. Revista da Faculdade de Letras 285, Porto, III Série, vol. 7, 2006, pp. 285-290.



segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

As relações entre o Futebol e a geopolítica (5° Edição, 20.02.11)


Este texto foi produzido originalmente em maio de 2010 no período em que estava como bolsista do brilhante professor Dr. Antônio Carlos Castrogeovanni, mas esta sujeito a modificações e ampliações.




Antes de começar a partida 
Uma introdução


        Futebol é muito mais do que simplesmente vinte e dois jogadores, uma arbitragem e uma bola que fluem no espaço de uma arena com delimitações internas e externas aonde cada equipe objetiva ir às redes adversárias com uma bola. O futebol é muito mais do que isso.
  
O esporte bretão, enquanto desencadeador dos sentimentos mais esquizofrênicos, enquanto vetor da (re)criação e amalgamação de identidades em diferentes escalas geográficas, enquanto esporte de massas mais popular em todo o mundo, enquanto encarnação e reflexo de pretensões e interlocuções políticas e geopolíticas, enfim, enquanto tudo isso e mais um pouco, é sim, o futebol, um fenômeno que nos ajuda na compreensão dos processos sócio-espaciais existentes, servindo, portanto, de objeto de estudo para as ciências humanas já que comporta-se como um fenômeno capaz de extravasar a sua própria essência. 
  
Mais do que tentar encarar a prática futebolística como possuindo uma relação com a sociedade, deve-se ter em mente que futebol é a própria sociedade expressa em contornos próprios. Para além de sua especificidade mecânica, estamos aqui tratando de uma prática social, fruto de todo um contexto histórico-geográfico. Neste sentido, mesmo preocupando-me em especial com a geografia, eu devo admitir ao futebol, afirmando a ideia de Luiz Carlos Ribeiro (2004), uma multiplicidade de abordagens possíveis: desde aquelas mais vinculadas aos diferentes espaços com os seus traços culturais específicos (aproximando dos estudos etnográficos) até mesmo aquelas abordagens mais ligadas às questões do caráter segregador que o futebol apresentou nos seus tempos mais jovens de existência ou então ao seu movimento rumo à mercadorificação, o que se deu a partir da sua apropriação pelo capitalismo financeiro. E porque não considerar a validade de uma abordagem econômica relacionada a projetos de crescimento econômico (será?) buscando a realização do desenvolvimentismo e das reordenações urbanas? Praticamente é só o que se tem ouvido falar atualmente nesta etapa preparação para a Copa do Mundo de 2014.


Qual tática usar?
As minhas abordagens


Este breve artigo parte de algumas análises pretéritas de autores ligados ao assunto buscando extrair as correspondências existentes entre o bolapé (assim chamado por Lima Barreto) e as manifestações geográficas, mais precisamente, as manifestações geopolíticas. Por este motivo concentrar-me-ei especialmente em uma abordagem que busque dar conta: 

(1) Do processo histórico-geográfico de gestação da prática do futebol e da sua difusão geográfica para a América do Sul;


(2) Da apropriação política do futebol como um instrumento capaz de:
(2.1) forjar/reforçar identidades nacionais que possam justificar ações de ordenamento social do território na concretização da legitimação da dominação de classe (em regimes autoritários formais ou informais e até mesmo regimes de representação parlamentar burguesa);
(2.2) forjar/reforçar identidades sociais frente à outras formações sócio-espaciais encaradas com rivais (o que se desenvolve principalmente no âmbito da Guerra Fria); e
(2.3) servir como palco de afirmações/manifestações politicas.


(3) dos Respingos sobre o futebol:
(3.1) Das rivalidades interestatais; e
(3.2) Das transformações pelas quais as sociedades permanentemente passam e que refletem sobre o futebol quando passamos a considerar o seu planejamento e a evolução conceitual de seu aparato normativo (fora e dentro das quatro linhas) bem como das concepções táticas.
 
Em todas essas abordagens escolhidas para este artigo não são raras as possibilidades de que elas estejam (em suas totalidades) enredadas com outras dimensões da realidade social e que também estas realidades guardem estreitas relações umas com as outras de maneira que a combinação origine processos sociais bastante complexos. Foi o caso, por exemplo, do esquema tático Húngaro que combinava o reflexo das aspirações coletivas de sua sociedade em plena Guerra Fria com um ato de propaganda socialista frente à equipes capitalistas.


Como este texto é um artigo pequeno, obviamente que serão ressaltados apenas alguns poucos fatos dentre os tantos que são relevantes. Além disso, cabe colocar que em tais abordagens, não irei tratar das relações existentes entre entidades representativas como a FIFA e as questões políticas e diplomáticas internacionais. Tampouco existe "tempo" para tratar da apropriação do futebol para promoção política de determinadas personalidades históricas. Certamente que tais abordagens são válidas, mas aqui me limito a citar apenas dois exemplos. No primeiro caso temos o episódio ligado à exclusão da África do Sul nos quadros da FIFA em decorrência do regime do Apartheid. Quanto ao segundo caso temos, por exemplo, a utilização por Silvio Berlusconi do clube italiano Milan em sua empreitada de eleger-se para o cargo de chefe de governo do Estado italiano.


Do império Chinês ao império Britânico e deste até nós, os latinos



Antes de partir diretamente para a análise das abordagens propostas, algumas questões de caráter histórico devem ser colocadas. O surgimento do futebol, por exemplo, é uma delas. Na bela obra já citada de Hilário Franco Júnior, A Dança dos Deuses, o autor coloca as diversas especulações sobre as origens do esporte aqui tratado e cita as diversas práticas com bola realizadas em diferentes contextos espaciais e temporais. O autor trata de especulações que vão desde as práticas de guerreiros chineses à aproximadamente 1500 a.C. passando por práticas realizadas por povos meso-americanos pré-colombianos, gregos, romanos, por cidades italianas na época renascentista até o surgimento daquilo que é considerado o moderno futebol na Inglaterra. Eram, naquelas tempos longínquos, práticas repletas aspectos religiosos e aspectos relacionados à celebração de vitórias em batalhas por guerreiros que faziam das cabeças de seus oponentes mortos, o que hoje chamamos de bola. 

Data do ano de 1848 a primeira uniformização das regras do futebol. De acordo com Joel Rufino dos Santos (1981), o futebol constitui, ao lado da exportação de capitais e produtos manufaturados, uma das formas pelo qual se fazia existir o imperialismo inglês, então hegemônico naquele paradoxal século 19. A partir de tal consideração retorno à análise de Hilário que em seu livro cita a criação, sob influência inglesa, de diversas entidades ligadas ao futebol, primeiramente na Europa Continental e, posteriormente, na América do Sul. Aqui, em pleno Novo Mundo (novo para o europeus, claro), este processo se deu tanto de maneira direta, isto é, com a atuação própria de cidadãos ingleses na fundação de clubes de futebol, ou então de maneira indireta a partir de membros da elite brasileira que, no retorno dos seus estudos na Europa, para cá trouxeram a prática deste esporte. Podemos citar até mesmo cidadãos alemães, holandeses ou suíços já seduzidos pelo esporte bretão que aqui auxiliaram os povos da América na descoberta e propagação do futebol.

 O geógrafo Gilmar Mascarenhas (1998) mostra que a propagação do football em finais dos oitocentos está umbilicalmente associada com o imperialismo clássico britânico, pois é nele que se encontram as principais condições de realização da difusão deste esporte nos quatro cantos do mundo. Condições essas como a (i) estruturação de redes internacionais¹ e a  larga extensão territorial do Império britânico; (ii) a enorme abrangência da distribuição dos seus investimentos; (iii) e a forte migração britânica no contexto da onda migratória europeia na segunda metade do século XIX. Como ainda frisa Mascarenhas, aquelas cidades dotadas de capacidade atrativa ao capital inglês (cidades portuárias, em rota de ferrovias e aquelas capazes de atrair investimentos em indústria ou infra-estrutura) serviram de porta de entrada para novos valores e comportamento, entendidos como modernos e civilizadores. O futebol é parte desta totalidade e o seu surgimento na América também. Em pleno Novo Mundo, este processo ocorreu tanto de maneira direta, isto é, com a atuação própria de cidadãos ingleses na fundação de clubes de futebol, ou então de maneira indireta a partir de membros da elite que, no retorno dos seus estudos na Europa, para cá trouxeram a prática deste esporte.

A influência inglesa é evidente até hoje no nome de muitos clubes da região platina, onde o seu imperialismo era mais notório. Como alguns dos exemplos existentes nós temos os argentinos Banfield, River Plate, Boca Juniors, Newll’s Old Boys; os chilenos Everton, Green Cross, Wanderers; na Bolívia o The Strongest; no Brasil o River do Piauí, Arsenal do Mato Grosso etc.


Ainda sobre este ingresso da informação futebolística em terras americanas, Mascarenhas, no mesmo artigo, coloca que no Brasil, ao contrário dos processos argentino e uruguaio, o surgimento do futebol se caracterizou geograficamente pela dispersão espacial, pois surgiu em pontos distintos do território, e de maneira quase simultânea. O fato se explica pelo contexto histórico-geográfico da época: uma recém nascida república apoderada por agentes dominantes regionais, os coronéis, cujo poder emanava das relações econômicas no campo, pois a industrialização era incipiente. Tais agentes comandavam porções do território que estavam estruturadas em uma formação espacial de ilhas produtivas que guardam raras ou nenhuma articulação entre si já que estavam muito mais articuladas com o mercado internacional configurando um verdadeiro arquipélago econômico. Tratava-se de uma sequela histórica: os arquipélagos econômicos da chamada América Espanhola dispersaram-se politicamente em vários Estados. Aqui não. A ferro e fogo a Monarquia brasileira, manteve a unidade política do território perdendo somente a Cisplatina em 1828 (atual República Oriental do Uruguai). A manutenção do sistema escravista era fundamental em uma economia primário-exportadora que não avançava sem o suor dos negros africanos. Assim, o capitalismo brasileiro (retardatário, periférico, atrasado) àquela época não era somente um, mas vários capitalismos dispersos cada qual com sua oligarquia no controle local, todas tributárias da hegemonia imperialista britânica. Fica claro, que não havia no Brasil uma forte burguesia capaz de criar ou impor um projeto nacional que fosse progressista ou modernizante capaz de querer superar o atraso capitalista do Brasil e integrar o território. O Brasil precisará esperar pela “Revolução de 1930” liderada por Vargas para começar um projeto modernizante, nacional e integrador do território.
  

O mesmo autor ainda coloca uma decorrência lógica deste desenvolvimento: a evolução do esporte como estando associado basicamente à países de cultura ocidental cristã (embora muitas equipes do Leste Europeu tiveram uma fase de grande força no futebol mundial como o caso da Hungria que acabou revelando Puskas, um dos maiores jogadores de futebol de todos os tempos). Neste caso é o notório o fato de que todos os campeões mundiais são, ou europeus, ou latino americanos, e que as únicas Copas do Mundo somente chegaram aos demais continentes no século XXI: Coreia do Sul e Japão em 2002 e África do Sul em 2010. A eles irá se somar em 2022 o Catar dos petrodólares. Ainda, conforme Hilário, é interessante outro fato: naqueles países onde a influência imperialista inglesa fora indireta, sem domínio territorial, caso da América Latina, o futebol ganhou uma força desproporcional em relação àqueles territórios diretamente relacionados à seu Império (Canadá, Índia, Austrália, África do Sul e Estados Unidos).
 

Futebol e as lógicas de poder
Abordagem 2.1


É importante colocar que nas abordagens 2.1 e 2.2, o elemento nacionalista lhes permeia de maneira mais ou menos intensa. O nacionalismo enquanto fenômeno social configura um importante recurso geopolítico que fora intensamente externalizado em um período histórico-geográfico que Harvey (2005) denomina de ascensão dos imperialismos burgueses (1870-1945). Nesta fase imperialista clássica, a lógica de poder territorial expressa nas estruturas do Estado territorial se encontra e se entrelaça com as lógicas capitalistas de poder. Surge desta combinação, ora mais dialógica e ora mais dialética, a propagação do discurso nacionalista fortemente amparado pelo racismo exacerbado, cientificamente robusto àquela época. Os objetivos residem na busca da superação de situações de desordem social interna e de propulsão da nação na luta por domínios territoriais externos necessários às demandas dos capitalismos nacionais nucleares. Obviamente que a recorrência ao sentimento de nação para fins geopolíticos não se encerra em tal etapa, pois são várias as situações existentes ao longo da segunda metade do século 20: desde os regimes fascistas residuais de Espanha e Portugal, passado pela ditadura civil e militar brasileira durante, principalmente, o governo Médici (1969-73) até as manifestações nacionalistas de caráter abertamente xenófobo na Europa atual envolvendo torcedores, desportistas e dirigentes políticos. Em todos estes exemplos citados, sem exceção, o futebol está presente. Mas como isso pode vir acontecer? Tentarei me aproximar de uma possível explicação.


Conforme Luiz Carlos Ribeiro (2004) o futebol é o lugar onde, por exemplo, reside uma afetividade que se manifesta sem reconhecimento de classe social sendo, portanto, um lugar bastante privilegiado de uma explosiva manifestação do inconsciente coletivo, pois é palco de algumas das expressões mais significativas da organização humana: os sentimentos de identidade e de pertencimento. E é notável neste sentido que, para além daquilo que o futebol desperta, a sua imensa popularidade consegue relegar à certos “astros”, conforme cita Teresa (2006), uma popularidade maior que muitos chefes de Estado. Em um país como o Brasil, onde a própria pátria tem identificação direta com o futebol, esta lógica possui imenso significado político. É interessante lembrar que a seleção brasileira de futebol, mesmo tendo o apelido de seleção canarinho, é, por exemplo, identificada mesmo por seus torcedores como Brasil (ou seleção brasileira). Assinala-se assim a não existência da separação entre o futebol e a própria pátria. Justamente o contrário acontecem com outra tradicionais seleções de expressão mundial: Azurra (Italia), Fúria ou La Roja (Espanha), Celeste (Uruguai), Mannschaft (Alemanha), Laranja (Holanda) e outras denominações como afirma o historiador Hilário Franco Júnior (2007, p. 176) que ainda diagnostica: no fundo projetamos nossas aspirações coletivas mais nos campos de futebol do que nos campos sociais (ibidem, p. 130).

  Mas, continuando dentro da proposta de análise das relações envolvendo futebol e geopolítica naquilo que se referente a apropriação do futebol como um instrumento que permite forjar/reforçar as identidades nacionais que possam justificar ações de ordenamento social do território na busca da legitimação de políticas de dominação de classe, podemos colocar alguns casos dignos de nota. É o caso de governos autoritários que chegaram a apoiar de forma direta ou indireta alguns determinados clubes de futebol em seu próprio país conforme assinala e analisa Hilário Franco Júnior. Foi assim com Hitler e o Schalke 04 na Alemanha, Mussolini e o Roma na Itália, Francisco Franco e o Real Madri na Espanha, Salazar e o Benfica em Portugal, Ceausescu e o Steaua Bucareste na Romênia, Perón e o Racing na Argentina, Médici e o Flamengo no Brasil, etc. No caso espanhol, o general Franco, visando conter os regionalismos aflorantes como o Catalão e o Basco, favorecia o castelhano Real Madri frente aos antimonarquistas, anticastelhanos e esquerdistas da Catalunha. Tais ingredientes tornaram o clássico entre Real Madri e Barcelona um prato cheio de significados que iam muito além de uma partida de futebol entre rivais. Na Itália, o Duce utilizou amplamente a Copa de 1934 realizada em seu país na tentativa de alimentar o orgulho nacional. Mussolini colocou um general para cuidar dos assuntos de futebol e de tudo fez para que a Itália se sagrasse campeã daquele mundial. Também é interessante que seja citado o fato de que em plena Segunda Guerra Mundial os torneios de futebol nacionais não foram cancelados nem na Alemanha e nem na Itália, dois países que guardavam centralidade no conflito. Isso é uma evidência da importância do futebol nas relações geopolíticas internas. Reforçando este entendimento é digno de citação que o 3° Reich, após ocupações de Áustria e Ucrânia, buscou organizar confrontos futebolísticos nestes territórios ocupados e em ambos obteve sérias manifestações de repúdio à sua atitude imperialista.



O esporte, além de veículo de projeção interna, foi também utilizado como um meio de aproximação internacional, chegando a realizar 78 participações esportivas internacionais em apenas um ano, todas fortemente marcadas por sua conotação política. (FREITAS JR;  CAPRARO, 2002).



E no Brasil dos governos formalmente autoritários? Como não poderia ser diferente, o futebol também foi amplamente utilizado com finalidades (geo)políticas. O Estado Novo, por exemplo, ao apresentar-se como a grande solução que encaminharia a sociedade rumo à modernização, visava encerrar os conflitos de classe e forjar a nacionalidade brasileira. Nos primeiros anos da “Revolução de 30”, conforme bem coloca Luiz Carlos Ribeiro (2003), o jogador de futebol tornou-se assalariado e como todo trabalhador profissional deveria enquadrar-se em uma representação sindical própria. Segundo este mesmo autor, o futebol passa a ter uma dupla dimensão. Uma dimensão política ao servir aos interesses de ordenamento social do Estado, e outra cultural ao forjar uma identidade brasileira ligada àquela prática desportiva através de sua disciplinarização no Estado Novo através da criação do Conselho Nacional de Desportos em 1941.

Mas foi duas décadas depois que o futebol brasileiro passou pela maior exploração política de sua história para fins de legitimação de um regime. Era o auge da repressão militar ocorrida no governo de Médici que aparecia no noticiário da TV fazendo canhestramente embaixadas com a bola nos pés (GONÇALVES, 2002). Foi considerado naquele período que o selecionado nacional havia feito corpo mole na Copa de 1966 e que por isso deveria ser disciplinado. Assim, a comissão técnica da seleção fora militarizada para o Tri com a criação da COSENA (Comissão Técnica Selecionadora) que limitava a possibilidade do técnico de escolher livremente os jogadores. A interferência era mesmo grande: Zagallo como técnico fora colocado no lugar de João Saldanha que recusou-se a aceitar a dica do presidente de convocar Dario Pereira.  Contudo, a conquista do mundial no México em 1970 veio e não poderia ter acontecido em melhor momento para os estrategistas de Estado. Um ano antes, diante de intensas manifestações contra o regime ditatorial civil e militar, o governo resolveu de fato enrijecer o controle político da sociedade através do famigerado Ato Institucional número 5. Nada melhor, diante dos fatos, do que uma grande conquista internacional por meio do futebol para evidenciar o quanto o Brasil, na visão  os projetistas de Estado, estaria no rumo correto para alcançar o seu destino enquanto potência mundial. A exploração midiática da conquista fora amplamente utilizada por meio da televisão e do rádio, veículos fundamentais de difusão ideologia que contaram com incentivo creditício para que mais famílias pudessem adquiri-los. Neles, frequentemente tocavam musicas e marchinhas animadas e ufanistas como "Eu Te Amo Meu Brasil" (Don e Ravel, 1970) e “Pra Frente Brasil” (Miguel Gustavo, 1970). Com o mesmo nome existe um excelente filme brasileiro, de 1982, que retrata a brutalidade, o autoritarismo e a violência que se mostrava capaz o Estado brasileiro à época para consolidação da modernização conservadora do país. O filme teve verba publica aprovada por Celso Amorim, então presidente a Embrafilmes e recente ministro das Relações Exteriores do governo Lula, que viu-se obrigado a demitir-se na ocasião. O filme estreou somente em 1983. Um outro filme bastante interessante sobre o mesmo período é recente "O ano em que meus pais saíram de férias", contato a partir da perspetiva de um menino que... bom, vai lá ver o filme.


 


 

        Então, a apropriação do futebol pelas lógicas de poder territorial e capitalista, apresentam funcionalidades promissoras na busca de concretizações de pretensões geopolíticas internas e externas bem como na manipulação dos sentimentos de identidade para fins mercadológicos. É ai que os efeitos negativos e nefastos disso, como o nacionalismo xenófobo, por exemplo, encontram conjunturas favoráveis para serem expressos. E os contornos adquiridos por tais expressões podem tornar-se ainda mais nocivos e serem traduzidos em violência verbal, psicológica ou até mesmo violência física em tempos de crises econômicas. Basta lembrar que a Europa fora conduzida pelos imperialismos burgueses  ao centro da maior onda de violência moderna padronizada pelas duas grandes "Tragédias Mundiais". A mesma sequela  hoje emerge trabalhada pela crise atual do capitalismo financeiro (o termo financista, creio, é mais apropriado) globalizado. Esta crise, em processo, põe em xeque, através de práticas neoliberais e de busca por maior competitividade econômica, todo um aparato de conquistas de direitos sociais adquiridas no pós-guerra. Tudo isso contribui para manifestação, nos inconscientes coletivos, dos sentimentos de aversão que facilmente relacionam a culpa de uma etapa histórica repleta de infortúnios à elementos exógenos àquela sociedade atordoada.




Processos espaciais respingam sobre a bola
Abordagens 2.2 e 3.2





Não é casual que a Inglaterra tenha sido berço da Revolução Industrial e do futebol já que ambos baseiam-se em competição, produtividade, (...) supremacia do mais hábil, especialização de funções, quantificação de resultados, fixação de regras (FRANCO JÚNIOR, 2007, p.25).


        Tanto na sociedade capitalista em consolidação irá acontecer uma proliferação de instituições e de leis para codificar e padronizar a vida social como isso terá reflexos no futebol, encarado, desde os seus primórdios enquanto esporte moderno, dentro de uma concepção pedagógica que buscará ajudar a criar uma moral para a elite britânica (o futebol era esporte praticado inicialmente pela elite, mas aos poucos será reivindicado pelos trabalhadores e população marginalizada em geral) que governaria um vasto império. Era cabível, portando, a colocação de Robert Levine: "futebol é uma metáfora da dinâmica social. E de fato este esporte guardava muitos aspectos de tradutor da história contemporânea" (apud idem).


Como podemos perceber, as regras do futebol, assim como as de outros esportes, aos poucos mostravam evoluções. Cito aqui duas das mais interessantes para que eu possa explicitar minha proposição. Uma delas é a regra do impedimento que coloca como estando “fora de jogo” aquele jogador que, furtivamente, colocava-se às costas do seu adversário para beneficiar-se em direção ao gol. Também acho interessante colocar a criação de fronteiras internas até hoje conhecidas da arena de jogo que seriam, conforme Hilário, a expressão futebolística da geopolítica da época. Uma geopolítica que propunha a exploração do espaço nacional ou imperial através, por exemplo, da propagação dos sistemas protestes territoriais de movimento: redes de ferrovias internas e transcontinentais, canais transoceânicos, etc.

As questões táticas também herdaram a carga geopolítica. Quando da hegemonia do imperialismo inglês, o sistema 1-10 (1 defensor, não era o  goleiro  que sua figura inexistia, e 10 atacantes) correspondia a tática de ação direta que reinava à época. Mas as atuações mal-sucedidas em muitas partidas e na Guerra da Criméia (1853-56) fizeram tal tática cair em desuso. Também coube importante contribuição aos prussianos. Esses mostraram que uma aplicação em equipe, mais coletiva, era muito mais eficaz do que aquela baseada no heroísmo individual. Com a Guerra Fria, teve uma grande repercussão no plano tático o 4-2-4 húngaro que aplicava a marcação por zona. Tal esquema mostrou-se mais eficiente do que a marcação individual ao apropriar-se a solidariedade coletiva para o bem comum. Os húngaros, o que confirma Puskas, atacavam e defendiam em bloco além de jogarem sem a bola através da intensa movimentação em campo.


Neste último caso citado podemos revelar que uma abordagem enreda-se a outra(s). Os respingos no mundo do futebol gerados pela situação geopolítica da época (Guerra Fria) guardam relações com apropriação do futebol como instrumento de reforço de uma identidade social frente a uma outra formação sócio-espacial. Os Húngaros possuíam uma das maiores seleções de todos os tempos, conhecida na Copa de 54 (vencida pela Alemanha em cima da própria Hungria em partida mais do que duvidosa que configurou uma das maiores zebras da história das Copas) como a Seleção de Ouro como um lógico reconhecimento por ter sido campeã nas Olimpíadas de Helsinque. Esta seleção (além de outras do bloco geopolítico representado pelos Estados burocráticos, chamados vulgarmente até hoje socialistas. Pasmem!) encarava o futebol como uma das formas de combate ao capitalismo ocidental fazendo-se evidenciar por meio de sua prática a superioridade de sua formação social. A seriedade com que tratavam esta forma de combate a esse capitalismo era tamanha que, durante o biênio 1948-9, seguiu-se na Hungria uma onda de nacionalização dos clubes para o fim de melhor preparar a seleção nacional para as competições internacionais. Autoridades húngaras chegaram ao ponto da permissividade em relação a certas regalias aos jogadores (salários e vista grossa para obtenção de mercadorias no exterior, por exemplo) em um país onde o futebol não era profissionalizado. Após a intervenção soviética nos assuntos internos húngaros, muitos foram os jogadores que saíram do país.
 
Outro grande respingo das questões sociais externas ao futebol é o caso da gestação do revolucionário sistema tático do “carrossel holandês” de Cruyff e companhia. Era um sistema onde não existiam na prática jogadores que ou somente atacavam ou então somente defendiam. Todos os jogadores movimentavam-se pelo campo como um reflexo na sua prática futebolística das transformações liberalizantes postas em práticas através da Constituição de 1966. Tal carta, para melhor compreender a questãohavia liberado o comércio de drogas leves como a maconha em coffe-shops.
 
Em termos de planejamento de futebol cabe citar o caso brasileiro, que aconteceu em plena ""Era JK" e que redundou em sucesso máximo na Copa da Suécia de 1958. A conquista rendeu a composição "A Taça do Mundo é Nossa" de autoria de Maugeri Sobrinho e Maugeri Neto que logo transformou-se no hino daquele primeiro título mundial. 





        Seguindo a ideia de planejamento estratégico nacional para a concretização do Plano de Metas no governo de Juscelino Kubitschek, o futebol também fora amplamente planejado através de um criterioso plano de 96 artigos que ia desde a discussão dos erros cometidos em competições passadas até a escolha de profissionais para arquitetar e estudar táticas, cuidar das questões logísticas, paração física, da preparação psicológica etc. 








O futebol não é só alienação. Pode também ser contestação!
Abordagem 2.3


        Muitos autores de tradição marxistas têm abordado o futebol enquanto esporte de massas pela ótica do “ópio do povo”, ou seja, como instituição à serviço da alienação da classe trabalhadora que teria diluída a sua consciência de classe. Até mesmo intelectuais brasileiros como Lima Barreto e Graciliano Ramos eram contrários a sua prática. Essa funcionalidade atribuída ao futebol é inegável historicamente e remete à abordagem 2. Um dos interesses da burguesia em fomentar o futebol consistia inegavelmente em manejar a popularidade deste esporte para ocupar o tempo da “agitada” classe operária e, simultaneamente, fazer com que, a partir da prática futebolística, os operários desenvolvessem os sentidos de disciplina e espírito coletivo (Jesus, 1998).


        Mas devemos entender que esta abordagem, embora seja válida e se faça necessária em muitos casos, ela não pode ser tomada como uma realidade absoluta. O espaço da prática do futebol sob os holofotes midiáticos (em campeonatos oficias regionais, nacionais e internacionais) é passível de ser disputado ideologicamente. Encontro aqui uma boa oportunidade para colocar, conforme nos mostra Euclides de Freitas Couto (2010), que o futebol também pode servir, considerando que é um esporte de massas, como um veículo de contestação politica. A década brasileira de 70 nos brinda com dois exemplos notórios em nossa historia que ganham ainda mais destaque na medida em naqueles tempos a repressão politica esteve no auge: “jogadores como Afonsinho e Reinaldo, serviram como catalisadores das aspirações ideológicas da esquerda brasileira” (ibidem, p.3). O primeiro apresentou-se fora demais dos padrões estéticos do “bom” desportista brasileiro quando da reapresentação ao clube, o Botafogo: barba e cabelo compridos demais, o que, na naquela época, no subconsciente coletivo e Estatal, era sinônimo de esquerdismo. A caso rendeu indisposição de Afonsinho com o “disciplinante” técnico Zagallo midiaticamente respaldado após a exibição exitosa do novo futebol arte-disciplina vitorioso em 1970. Segundo Couto, através da Lei do Passe o jogador esteve impedido de jogar em um outro clube e o caso tornou-se então um prato cheio para estudantes e intelectuais de esquerda que exploraram a imagem de Afonsinho como uma espécie “revolucionário” pela via das quatro linhas. Isso lhe aproximou da esquerda artística. Tornou-se amigo de Chico Buarque, Sérgio Freitas e Gilberto Gil que, em sua referencia compôs a canção “Meio-de-campo” (1973).



     Já em contexto de abrandamento lento, seguro e gradual do regime autoritário, em amistoso contra a Suécia no México em 1978, o atacante Reinaldo, após marcar o gol que sentenciou o placar de 1 x 1, realizou o mesmo gesto de protesto protagonizado pelos atletas estadunidenses, medalhistas em 1968 (Olimpíadas do México), Tommie Smith e John Carlos: comemora seu gol com o braço direito erguido e o punho cerrado. 


     Reinaldo era à época o grande craque do futebol brasileiro e se valeu de sua fama e visibilidade para expressar sua consciência politica, o que gerou um enorme polêmica e lhe rendeu perseguição politica dos cartolas, dos militares bem como da imprensa beneficiada pela ditadura. E como era de de esperar a polêmica esteve não raro travestida de um discurso que questionava a condição física de Reinaldo para atuar na Seleção.


O futebol é uma guerra 
Abordagem 3.1

Chegando à uma outra abordagem, as rivalidades interestatais também podem ser bastante evidenciadas na prática do futebol. A primeira Copa do Mundo realizada no Uruguai em 1930 inaugurou as manifestações nacionalistas realizadas por meio do futebol. Condutas violentas e gritos de guerra entre as torcidas do Uruguai e da Argentina marcaram aquela Copa. Os primeiros invadiram o campo ao entenderem que o árbitro brasileiro havia favorecido os argentinos em partida contra a França. Já os argentinos acabaram por depredar o consulado uruguaio em Montevidéu após a vitória da Celeste na final. Obviamente que a raiz de tais rivalidades encontra-se na disputas pelo território uruguaio que, por ocasião do conflito armado entre Brasil e Argentina por sua posse, acabou tornando-se um Estado Tampão em 1828, a República Oriental do Uruguai.

 
Na Copa da França, em 1938, quando a Squadra Azurra sagrou-se bicampeã “embalada” pelas palavras “vencer ou morrer” de Mussolini, os jogadores italianos haviam sido recebidos no torneio com grande hostilidade pelos franceses que evidenciavam com clareza o asco nutrido pelo regime fascista italiano.

 
A própria FIFA teve que mudar sua sede, em 1932, para um território que estivesse além das divergências geopolítica internas na Europa indo para Zurique, Suíça. Essa mesma entidade hoje é mais representativa do que a própria ONU conforme Teresa. Este autor coloca que a FIFA possui 205 filiados (inclusive uma representação palestina), quatorze a mais que a ONU. O mesmo acontece com a UEFA que conta com 52 representantes (incluindo Israel) enquanto que a União Europeia não conta com 30 membros.


Um dos casos mais emblemáticos data de 1969 onde o nacionalismo aflorou em uma partida de futebol entre duas nações que se compreendiam como rivais: Honduras e El Salvador. 



Ambas tiveram de se enfrentar nos jogos de qualificação para o Campeonato do Mundo de 1970. Tendo perdido por 1 a 0 no desafio da 1° mão, El Salvador acabou por vencer a eliminatória na 2ª mão num ambiente de tal forma hostil que a equipa das Honduras teve de ser acompanhada ao estádio em viaturas blindadas. Face a esta situação e à eliminação, milícias armadas expulsaram os camponeses salvadorenhos instalados nas Honduras. Estava dado o mote para uma guerra que iria durar quatro dias (TERESA, 2006).

 Neste caso, embora não tenha ocorrido uma manifestação hostil por parte dos poderes estatais de nenhum país, fica evidente o entrelaçamento existente entre o sentimento de identidade manifesto no torcedor e as questões geopolíticas regionais.



Fim de jogo e a avaliação final do comentarista sem mais delongas

Chego à conclusão deste (nem tão) breve artigo sobre futebol e geopolítica colocando, a partir de tudo que fora exposto, que existem grandes possibilidades de que sejam encontradas no Futebol, várias expressões tanto da materialidade sempre em constante evolução, como daqueles aspectos mais simbólicos das sociedades. Buscar aquelas questões mais pertinentes ao campo de estudo dos geógrafos é o objetivo maior, mais especificamente as relações espaciais que o futebol guarda com a geopolítica.


Notas
¹ Redes constituídas por vias marítimas transoceânicas e ferrovias ligando as áreas produtoras aos principais portos possibilitadas pelos avanços da revolução industrial. Tais redes possibilitam fluxos internacionais de mercadorias e investimentos ingleses, principalmente.

Bibliografia:

AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2002.
CAPRARO, André Mendes; FREITAS JR., Miguel A. de. Resenha do livro AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2002.
COUTO, Euclides de Freitas. A esquerda contra-ataca: rebeldia e contestação politica no futebol brasileiro (1970-1978). Revista de História do Esporte volume 3, número 1, junho de 2010.
FRANCO JÚNIOR, Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
GONÇALVES, Adelto. Resenha do livro AGOSTINO, Gilberto. Vencer ou morrer: futebol, geopolítica e identidade nacional. Rio de Janeiro: FAPERJ: Mauad, 2002.
Harvey, David. O Novo Imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2005 (2° Edição).
JESUS, Gilmar Mascarenhas. Construindo a “pátria de chuteiras”: elementos para uma geografia da difusão do futebol no Brasil. In: Ensinar e Aprender. Porto Alegre: AGB, 1998.
RIBEIRO, Luiz Carlos. Brasil: futebol e identidade nacional. Revista Digital – Buenos Aires, Ano 8, n°56, 2003.
          (disponível em: http://www.efdeportes.com/efd56/futebol.htm)
_______, Luiz Carlos. O futebol no campo afetivo da História. Movimento, Porto Alegre, v. 10, n. 3, p.99-111, setembro/dezembro de 2004.
SANTOS, Joel Rufino dos. História política do futebol brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1981.
TERESA, Marco António Domingos. Geopolítica e o Desporto de Massas – O Futebol, 2006. Revista Militar (eletrônica).