domingo, 20 de fevereiro de 2011

O papel espacial do tempo humano _____ (parte 2, 1° edição, 20.02.2011)

No texto anterior eu havia me referido a uma ressignificação da noção e da percepção do tempo que estava sendo construída com a emergência da burguesia como classe social hegemônica de um capitalismo que dava seus primeiros passos sob a sua forma primitiva, o capitalismo comercial ou mercantil.

Como eu já havia sugerido, o modo capitalista de produção, que é essencialmente expansível geograficamente, ao criar desenvolvimentos desiguais e combinados pelo mundo, vai colocando diferentes povos, regiões e territórios sob as suas regras: as regras do mercado monetário, da acumulação ampliada do capital e do lucro. Estas regras impõem que a popular expressão “time is money” (tempo é dinheiro) seja cada vez mais um fiel relato da realidade econômica da vida de um número maior de pessoas no mundo.

Mas é importante entendermos que a noção de tempo é uma construção histórica que difere no espaço e no tempo. Ela vai sendo moldada pela evolução técnica de uma sociedade associada a sua mentalidade em relação à sua prática econômica. Se nos debruçarmos na história espacial da humanidade nós iremos verificar que, quanto mais remotos forem os períodos históricos analisados, mais noções temporais existirão quantos forem os lugares existentes. Em cada lugar existiram noções temporais mais autônomas, fruto da vivência particular de comunidades com o seu meio geográfico. Se ainda considerarmos lugares que envolvem processos históricos de evolução cultural distintos, teríamos noções temporais ainda mais distintas, e o mesmo ocorre em relação às técnicas.

Aqui se faz necessária uma recorrência ao Mestre Milton Santos que trata do processo de unicidade das técnicas. “Ao longo da história, as trocas entre grupos e, sobretudo, as desiguais, acabam por impor a certos grupos as técnicas de outros” (SANTOS, 2006, p.123). A consequência inevitável é que o número de técnicas será reduzido. A importância do modo capitalista de produção, mestre na articulação (excludente e desigual) das economias do globo, é central neste processo:

A criação das economias-mundo de que fala F. Braudel é um momento importante nessa evolução. A partir do século XVI, com a expansão do capitalismo, cria-se a possibilidade de trocas intercontinentais e transoceânicas, de plantas, de animais e de homens, com seus modos de fazer e de ser. As técnicas particulares tendem a se contaminar mutuamente.
Nos inícios do capitalismo, havia ainda, múltiplas equações técnicas, numerosas formas de utilização e criação de recursos. As escolhas eram várias. À medida que o capitalismo se desenvolve, diminui o número de modelos técnicos, a escolha se torna mais estreita. (SANTOS, 2006, p. 124)


Um excelente exemplo de perda da escolha diante da imposição de modelos técnicos nós podemos encontrar no pacote tecnológico imposto pelas corporações transnacionais da química na agricultura. As opções de escolha por parte dos agricultores em relação à suas sementes e aos seus cultivos foram se perdendo em meio às imposições de determinados padrões de cultivos cujo monopólio tecnológico garante poder aos seus detentores. O agricultor, feito refém, para adquirir o seu sustento deverá vender a sua produção na cadeia agroindustrial a um comprador que lhe dita determinados padrões. Deverá este agricultor usar uma determinada semente cuja patente pertence a uma transnacional. As sementes transgênicas, além dos inúmeros infortúnios ambientais, dos problemas fisiológicos que causam em animais e da falta de estudos de seus efeitos nos seres humanos, retratam bem a questão da unicidade da técnica politicamente planejada e imposta por poderes econômicos muito bem articulados. Para saber mais ai vai uma dica de filme: “O mundo segundo a Monsanto”.


Mas voltando ao tempo. Ele segue um caminho similar de unificação, principalmente naqueles lugares e territórios penetrados pelo capitalismo, o que acontece fundamentalmente no ocidente. E a ideia de tempo que se opera nas sociedades ocidentais é uma ideia linear, em seta, sempre constante e objetiva que conseguiu se fazer inquestionável com a evolução das técnicas de medição do tempo cada vez mais precisas: primeiramente mecânica (com o relógio mecânico nos tempos medievais), depois elétrica e atualmente atômica. E, como lembra Borges (2004) ao recorrer à Foucaut, a atual disciplina reguladora dos relógios que visa fracionar o tempo para que dele se possa extrair o máximo aproveitamento de sua sucessão com grande exatidão, foi uma prática constante nos monastérios medievais. A finalidade era encontrar uma ordenação temporal entre as orações e demais atividades religiosas. E dessa disciplina serviu-se a burguesia para ordenar as suas atividades comerciais e depois os ritmos do trabalho no interior das fábricas. Sobre o controle dos ritmos de trabalho dentro das fábricas, vale a pena conferir o filme "Tempos Modernos" (1936) onde Charles Chaplin faz uma sátira genial dos métodos  fordistas de produção (como a linha de montagem) que transformam o trabalho humano  (trabalho vivo) em mera repetição monótona de ações ritimadas pelas máquinas (trabalho morto).



Até então as noções de tempo, como já citei, eram muito mais diversas espacialmente. É notório que os ciclos naturais (do Sol, da Lua, da Terra e do clima) praticamente sempre se fazem presentes como parâmetro nas distintas sociedades. A maior carga de complexidade espacial fica por conta da forma de reprodução material e imaterial (simbólica) de cada sociedade que irá relacionar a contagem do tempo com a sucessão habitual das práticas laborais (hortaliças, com o gado, com a pesca, etc.) e com os seus rituais culturais próprios. E mais:

Leach observa que subjacente à cosmologia de um grande número de sociedades mundo afora está a noção de tempo como "oscilação entre contrastes repetidos", que vê a seqüência dos acontecimentos como uma sucessão de alternância entre opostos, cuja repetição dá ritmo ao devir: sol-chuva, dia-noite, vida-morte (LEACH, 2004, p.206 apud BORGES, 2004, p.26).

Mas é importante deixar claro: a difusão da noção de temporalidade imposta pela economia capitalista não se espalha como uma mancha de óleo que ocupa a integralidade dos territórios e atinge todos os lugares. Sendo o capitalismo um sistema dirigido por uma classe que visa o lucro e sendo que nem todos os lugares estão (ainda) em condições de dar suporte à este lucro, podemos encontrar ainda hoje diversas porções de territórios nacionais que conseguem conservar noções de temporalidade próprias. Há ainda os casos de lugares marginalmente inclusos na órbita do capital e que, por sua inclusão marginal e excludente, possuem temporalidades de velocidade ainda reduzida.

Lugares incluídos marginalmente pelo capitalismo. Vivência temporal lenta: mulheres lavam roupa em riacho em Minas Gerais. Foto: Valter Campanato.

Na medida em que o capitalismo vai se disseminado pelo interior dos Estados e se internacionalizando torna-se imperativo coordenar as ações dos agentes econômicos em nível nacional e mundial. Assim que sistemas de fluxos cada vez mais velozes permitem realizar a chamada compressão do espaço pelo (encurtamento) tempo, mais os momentos de estímulo e resposta convergem, isto é, sistemas de transporte mais velozes assim como sistemas de transmissão de informação (internet, satélites, etc.) são uma importante arma do capitalismo para vencer o atrito imposto pelo espaço.


Representação da superação do espaço pelo tempo (David Harvey, A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 220.)
Um importante passo rumo à padronização ocorreu quando o Homo sapiens sapiens separou as noções de dia solar verdadeiro e dia solar médio optando pela segunda. Na prática, se nós medirmos com um cronômetro, durante vários dias no ano, a duração do dia nos baseando em duas passagens consecutivas do Sol  (vamos imaginar que é o Sol que gira ao redor da Terra, pois neste caso não faz diferença qual é o referencial) pelo meridiano de nossa cidade, nós iremos verificar que o "Astro Rei" não apresenta a regularidade e a constância desejada para uma economia capitalista. O dia solar verdadeiro é variável: quando a Terra está no periélio (ou seja, quando sua distância em relação ao Sol é mínima), a velocidade angular do Sol sobre a eclíptica é máxima, fazendo com que o dia solar tenha uma maior duração. Já quando a Terra está no afélio, a situação se inverte. Como um dia solar que não seja sempre de 24h não é muito conveniente para regular a vida das pessoas, a solução foi inventar um Sol médio (matemático, abstrato) como se a Terra tivesse uma órbita circular exata. A diferença entre o dia solar verdadeiro e o médio é chamada de equação do tempo e pode ser visualizada pelo gráfico em forma de um “8” assimétrico como aquele que “O Náufrago” (Filme estrelado por Tom Hanks) utilizou para contar os dias do ano. A substituição do tempo solar verdadeiro pelo tempo médio ocorreu em Genebra em 1789, na Inglaterra em 1792, em Berlim em 1810, em Paris em 1816 e no Brasil no segundo quartel do século XIX.

 
 Observe o analema grafado sobre a rochas da caverna (07m 38s) a partir da luz do Sol que, em um determinado momento do dia, consegue entrar na caverna por um orifício. Com o analema feito (o que leva um ano) o Náufrago poderia contar os dia e o meses do ano.


Com o gráfico analema podemos marcar os dias e os meses e ainda mensurar os "atrasos" do Sol para uma hora qualquer do dia.
Um outro imenso passo, representado pelo sistema de fusos horários, fora dado em finais do século 19 em plena etapa imperialista clássica do capitalismo monopolista financeiro. Àquela época a aceleração do tempo fora protagonizada por aqueles setores relacionados a uma aceleração dos fluxos. Principalmente os fluxos de informação (o telégrafo por cabos terrestres e submarinos) e aqueles de pessoas e mercadorias (sistemas ferroviários principalmente. O século 19 é conhecido como a “era das ferrovias”). Aquela evolução técnica que cada vez mais passa a dotar os territórios de próteses que lhe conferem maior velocidade pode fazer com que as relações econômicas entre os Estados fosse maior e mais intensa. Logo, uma coordenação ou padronização do uso do tempo em escala mundial se fazia cada vez mais necessária, pois com o amplo desenvolvimento das ferrovias e do telégrafo, a confusão era cada vez maior. Trens, por estarem usando sistemas horários diferentes, chegaram a colidir pois cada localidade utilizava uma hora própria, ou seja, a sua hora local já que, à época, cada cidade média tinha a sua própria hora em relação à capital do seus país. Era geralmente nessas capitais que existia um observatório astronômico nacional como o de Washington, nos Estados Unidos, ou o do Rio de Janeiro, no Brasil. Em nosso país, por exemplo, enquanto a capital federal, então instalada no Rio de Janeiro, alcançava 12 horas, em Recife eram 12:33, e em Porto Alegre, 11:28.

Em novembro de 1840, a Great Western Railway torna-se a primeira companhia ferroviária a adotar a hora de Londres e fora seguida pelas demais posteriormente, o que gerou resistência de comunidades e cidades em adotar a hora de Londres. Nos Estados Unidos, desde 1883 passou a existir a divisão do território em faixas horárias, os famosos fusos horários.
 
A escolha do sistema mundial de fusos deu-se em Washington (1884) em plena fase de imperialismo clássico (o primeiro dos imperialismos burgueses conforme Harvey, 2005) onde a hegemonia mundial cabia ainda à Grã-Bretanha. Países como Estados Unidos e Canadá, de fala inglesa, apoiaram a decisão. Mas isso não estava de acordo com a França, país imperialista e historicamente rival dos britânicos. A França somente irá aderir ao sistema, que colocava a referência em Greenwich, subúrbio londrino, em 1911, pouco antes de estourar a Primeira Guerra Mundial (1914-18), assim como Portugal. Outros países europeus irão adotar posteriormente (como a Holanda em 1940). A URSS adota em 1927. O Brasil somente irá aderir em 1913, no governo do militar gaúcho Hermes da Fonseca, passando a ter 4 fusos horários (atualmente, desde 2008 são 3 fusos).

Mapa de fusos horários

Atualmente nem todos os países estão enquadrados neste sistema de maneira homogênea ou coerente, basta observar o mapa anterior. A China é um estranho exemplo. Este país possui uma distância longitudinal (extensão leste-oeste) de cerca de 60°, ou seja, existe uma diferença entre as horas solares de um extremo e outro de seu território de praticamente 4 horas. Logo a China deveria ter, no mínimo quatro fusos horários, mas tem apenas um. O seu único fuso se baseia na Capital Pequim (Beijing) no extremo leste. Sendo assim, quando, por exemplo, o Sol nascer em Pequim (quase extremo leste do território) às 06 horas (o que acontece no equinócio) uma localidade no extremo oeste (no Tibet, por exemplo) marcará também 06 horas mesmo o Sol nascendo somente cerca de quatro horas depois. Imaginem então a seguinte situação: no inverno quando o Sol nasce por volta das 09 horas em Pequim! Nascerá quase no horário do meio-dia naquela localidade Tibetana.

Temos também outros casos como o da Índia e do Nepal que possuem sistemas horários fracionados, o primeiro em ½ hora e o segundo em ¾ hora. Sendo assim, se no Paquistão (vizinho da Índia) marcar 5h, os relógios indianos deverão marcar 5h e 30m e os relógios do Nepal 5h e 45m.

O sistema de fusos horários funciona assim:
  • São 24 fusos horários onde cada fuso horário é uma faixa longitudinal de 15°, pois se dividirmos um corpo quase esférico (360°) em 24 faixas (já que o dia é dividido em 24 horas), cada faixa ou fuso terá uma extensão leste-oeste de 15°.
  • Todo fuso horário tem um meridiano central (0°, no caso do primeiro fuso, ou múltiplos de 15°) e dois meridianos limites (um 7,5° a leste e outro a oeste do meridiano central).
  • Dentro de cada fuso horário todos os relógios marcam a MESMA hora.
  • Todos os fusos horários são definidos em relação ao Tempo Universal Coordenado (UTC), o fuso horário que contém Londres quando esta cidade não está no horário de verão onde se localiza o meridiano de Greenwich, o qual divide o fuso horário. Fusos a leste marcam horas adiantadas, horas a oeste horas atrasadas. Lembre-se da bandeira do Japão, o país no extremo leste no globo. É no leste que nasce o Sol.
  • O UCT é o sucessor do Tempo Médio de Greenwich (Greenwich Mean Time), cuja sigla é GMT. A nova denominação foi cunhada para eliminar a inclusão de uma localização específica num padrão internacional, assim como para basear a medida do tempo nos padrões atômicos, mais do que nos celestes.
  • Para que não hajam unidades administrativas divididas por um fuso horário, as linhas delimitadoras dos fusos não podem seguir a linearidade dos meridianos nos continentes, elas devem adaptar-se aos limites territoriais entre países e suas unidades administrativas. O Rio Grande do Sul, por exemplo, seria dividido ao meio entre dois fusos horários pelo meridiano 52,5°O.



    No site que segue podemos ver um mapa dos fusos horários em tempo real que mostra quais as localidades estão sendo iluminadas no momento de visitação:


    Bibliografia:

    BORGES, Júlio César. O retorna da velha senhora ou a categoria tempo entre o Krahô. Dissertação de mestrado. Universidade de Brasília, 2004.

    SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço, Técnica e Tempo. Razão e Emoção. 4. ed. 2. reimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006 (Coleção Milton Santos; 1).

    MARTINS, Monica. JUNQUEIRA, Selma. A legalização da hora e a industrialização no Brasil.