quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

O papel espacial do tempo humano (parte 1, 2° edição)


O tempo é uma noção impregnada de humanidade. As pessoas, ao começar a operar o espaço geográfico e ao transformá-lo através do trabalho, passam a ter uma necessidade crescente de estabelecer maneiras, formas e critérios para melhor compreender a natureza. E para realizar esta tarefa, criação de parâmetros temporais é um importante subsídio.

A atual fase do capitalismo, que aqui denomino de globalização financeira (e financista), vem, desde o final da década de 60, mostrando seus novos estratagemas de acumulação do capital empreendidos pela grande burguesia internacional. Um destes estratagemas consiste em um controle ainda mais intensificado do tempo de grandes parcelas da população que interagem na economia capitalista. O resultado tem sido uma vivência temporal rápida, cronometrada (Cróhnos, deus grego do tempo), baseada nos minutos e nos segundos e tornando a nossa vivência espacial uma prisioneira à beira da paranóia do relógio que impregna a consciência individual e, como é de costume, parece programar a nossa percepção para que possamos absorver essa realidade como um dado irrevogável. Quando conseguimos parar  e pensar um pouco, meu deus: não estamos mais nos alimentamos direito, estamos seguidamente estressados, não mais conhecemos e interagimos sequer com nossos vizinhos e ainda continuamos trabalhando  mesmo após  a jornada "normal" de trabalho quando, em nossa residência, colocamos nossa mente para racionalizar  o trabalho para o dia seguinte. Pior: sem receber mais por isso. Pior ainda: para fornecer o suporte que a acumulação capitalista necessita até que, tcham tcham tcham tcham, uma nova crise econômica assole grande parte da população. Eu disse grande parte da população e não toda a população! Sabemos que grande parte do terráqueos nunca deixou de boiar na crise (social) que lhes é permanente. São violados cotidianamente em seus direitos básicos de reprodução material e imaterial. Vivem na condição de refugo humano como sentencia Zigmunt Bauman. A outra parte, uma meia-dúzia de players globais: os 200 homens mais ricos do mundo possuem mais dinheiro que os 2,5 bilhões de pessoas mais pobres da Terra (e que diz é a Veja, risos, ed1,n°761, 2002). Para estes agentes globais, a crise quase nada significa. Conhecem como ninguém a regras do jogo e possuem "bola de cristal". São detentores de múltiplas aplicações em vários ramos da economia financeira e, para garantir, praticam um lobie avassalador sobre ministérios estratégicos de governos para que estes utilizem os recursos sociais (impostos) para restituir eventuais perdas. Tudo em nome da responsabilidade técnica, "claro"! Basta ler nos jornais as ajudas emergenciais do Estado, outrora imprestável, na cifra das centenas de bilhões de dólares para as mesmas empresas financeiras que geraram a crise por operar a economia mundial como se a mesma fosse um cassino de um paraíso fiscal.

Mas sempre foi assim? Como tudo isso começou?

Acredita-se que o tempo começou a ser medido há cerca de 20 mil anos. E isso se deu quando a humanidade, ainda em estágio primitivo, onde a natureza era a suprema dominadora das ações humanas, passou a perceber e observar certos fenômenos naturais dotados de repetitividade, de caráter cíclico e regular. Além das marés, percebeu-se o movimento do Sol sobre a abóbada celeste indicando a sucessão habitual dos períodos diurnos e noturnos, fruto do movimento terrestre de rotação, surgindo assim a primeira concepção temporal natural, a mais evidente de todas: o dia. Não muito tempo depois também fora percebida a órbita lunar ao redor da Terra, o que permitiu forjar a concepção de mês. E mais: a observação de suas fases conjugada com marcações em gravetos e ossos marcando o número de dias entra cada uma das suas fases, pode ter originado o nascimento da concepção de semana (do latim septimana, sete manhãs).





Com o advento da agricultura, outro parâmetro orbital começa a se fazer sentir. Trata-se da translação (movimento orbital executado pelo nosso planeta ao redor do Sol, a estrela do nosso sistema solar) que, atenção (!), àquela época obviamente não estava presente como a representação orbital que temos hoje e que fora alvo das leis da mecânica celeste dentro de uma concepção heliocêntrica (Copérnico, Tycho Brahe, Bruno, Kepler, Galileu, Newton). A translação era percebida através das configurações das constelações no céu bem como das alturas solares (inclinação dos raios solares em relação ao local). Ambas mostravam uma repetição cíclica regular. As constelações, por exemplo, sofrem um deslocamento progressivo no céu para oeste até retornarem ao mesmo quando completado 1 ciclo translativo. A inclinação dos raios solares para um horário do dia (vou usar o meio-dia) sofre uma variação de cerca de 47° ao longo deste ciclo entre o ponto mais alto do Sol no céu (solstício de verão) e o mais baixo (solstício de inverno). E tudo isso ganha imensa significação na medida em que possui uma intima relação com o comportamento cíclico meteorológico (temperaturas altas e baixas, chuva e estiagem) e das consequentes cheias e baixas dos corpos fluviais, por exemplo, tão importantes para a prática agrícola. Estava traçado o caminho para desenvolver a noção de estações e de ano.





Parece que a preocupação com a medição do tempo, seja por motivos religiosos, agrícolas ou de estudo dos fenômenos celestes assolou todos os povos antigos, nascendo assim, aos poucos, certos conhecimentos como a matemática, a geometria, a astrologia e a astronomia. É notável que a temporalidade tal qual se entende atualmente nasceu naqueles tempos primitivos como um fruto da percepção e da observação daquilo que se acontecia no céu. Não é por acaso que o panteão de muitos povos antigos é repleto representações celestes que se fazem divinas.

Da preocupação de compreender melhor a relação cognitiva que os povos antigos tinham com o céu e com o que nele se passa, nasceu durante na década de 1950 um ramo cientifico denominado arqueoastronomia. Inicia-se então um frutífero estudo sobre monumentos megalíticos neolíticos que, como parece, buscavam fazer uso de alinhamentos astronômicos evidenciando grandes habilidades matemáticas e de engenharia como ficou explicito em casos como, por exemplo, de Stonehengen (do inglês stone, pedra e hengen, eixo), ao sul da Inglaterra, o mais famoso, porém não o único monumento megalítico,  onde a disposição de monólitos esta de tal forma que permite a passagem de um feixe de luz e sua chega ao centro do circulo quando do nascer do Sol na data do solstício de verão para o Hemisfério norte.




Mas todo este desenvolvimento das concepções de temporalidade somente poderá acontecer quando a espécie Homo sapiens sapiens desenvolve a sua capacidade cerebral de comunicação criando sistemas de linguagem que, com o tempo, se tornaram mais complexos. Entre eles, a escrita. Aos poucos então, a noção de tempo vai ficando cada vez menos abstrata e mais objetiva e concreta através de formas de medição, fracionamento e sistematização do tempo como, por exemplo, os calendários.

Todo calendário consiste em um sistema de contagem e organização dos dias para o período anual. Ele nasce relacionado a uma organização da temporalidade sócio-espacial onde a agricultura era a fonte da reprodução material e a religiosidade era um fator fundamental básico de explicação do mundo. Ela permeava todos os poros daquelas sociedades que eram totalmente dependentes de uma natureza que era ainda muito pouco compreendida. Neste sentido, podemos dizer que, cada calendário é simultaneamente importante (a) pela carga de acumulação de conhecimento que ela demanda (principalmente astronômico e matemático) e também pela (b) carga de significados históricos e culturais que as datas possuem constituindo assim, uma importante fonte de compreensão da construção da memória coletiva daquele povo.

Jacques Le Goff, historiador, coloca que a ordenação do tempo através empreendida com tentativa de mensuração, faz parte de um conjunto de evidencias da busca empreendida pela humanidade pelo controle da natureza. “O calendário torna-se, nesta visão, um dos grandes emblemas e instrumento do poder; passível do controle dos detentores do poder como reis, padres ou revolucionários” (LE GOFF, 1990, p. 478).

Como não existe calendário perfeito, cada sociedade buscará organizar seu calendário de maneira que as suas discrepâncias sejam diluídas no maior número de anos possíveis.  A organização dos calendários tem por base três ciclos fundamentais: rotação e translação terrestres e a lunação (translação lunar).

O protótipo actual de calendário lunar é o calendário islâmico; do calendário solar é o calendário gregoriano; do calendário luni-solar é o calendário israelita. Mas também o calendário gregoriano conserva, de certo modo, uma base luni-solar no que diz respeito às regras para a determinação da data da Páscoa, a que procuraremos mais adiante fazer referência. (Marques, 2000)

Para efeitos de exatidão, pouco importa a organização interna dos calendários (o número de meses e de dias que estes meses possuem). O grande desafio era conseguir encaixar as 24 horas do dia (dia solar médio) junto a um valor inexato: o ano sideral (tempo entre duas passagens sucessivas de uma estrela sobre um determinado meridiano), de 365d 06h 09m 09,8s (ou 365,2564 dias solares médios). Mais tarde descobriu-se o ano solar, isto é, o tempo entre duas passagens sucessivas do Sol sobre um determinado meridiano, de 365d 5h 48m 45,3s (ou 365,24 dias solares médios). O ano solar é mais curto devido ao movimento de precessão dos equinócios responsável por fazer com que a entrada do equinócio na órbita terrestre aconteça antes devido ao seu retrocesso em cerca de 50 segundos de ângulo por ano. É justamente o ano solar que será o mais usado pelos calendários.

Os egípcios, por volta de 5000 a.C, talvez tenham sido os primeiros a chegar em um ano com 365 dias (2 meses de 30 dias e 5 dias adicionais no fim de cada ano), o que gerava um atraso anual de 6 horas. Sendo assim, a cada ano, as estações nasciam 6 horas mais cedo e assim levariam 1.461 anos para nascerem novamente na data original.

Uma tentativa de consertar este atraso veio com o Calendário Juliano, quando da reforma empreendida por Júlio César. O ano, então concebido como 365,25 dias (11m 4s mais longo que o ano solar), passou a ter então 365 dias e um dia a mais no quarto sendo este quarto ano, o famoso ano bissexto. Seu nome deve-se ao seguinte: o sexto dia antes do primeiro dia do mês seguinte (dia este chamados de calendas) fora duplicado. Por este calendário, em 128 anos, um dia seria acumulado. As discrepâncias deste calendário complicavam a posição da Igreja Católica, senhora ideológica dos tempos medievais, na medida em que uma data tão sagrada como a Páscoa estivesse nascendo em 1582 (ano da reforma gregoriana), cerca de 10 dias antes do Equinócio do dia 21 de março. O problema já havia sendo tratado a mais de 100 anos nos Concílios de Constança (1414), Basiléia (1436 e 1439), S. João de Latrão (1511 a 1515), de Trento (1545 a 1563).

O Calendário Gregoriano entre outras modificações, corrigiu a medição do ano solar, estimando que este durava o valor já citado e usou o artifício de pular 10 dias para fazer com que a data da Páscoa retornasse ao 21 de Março. Mas o principal recurso utilizado deu-se em relação ao ano bissexto. Este (agora sendo o dia 29 de fevereiro) somente seria utilizado nos anos múltiplos de 400. De acordo com Manuel Nunes Marques “a duração do ano gregoriano é, em média, de 365d 05h 49m 12 s, isto é, tem atualmente mais 27s do que o ano trópico. A acumulação desta diferença ao longo do tempo representará um dia em cada 3000 anos”.

O Calendário Gregoriano é o mais difundido atualmente no mundo e mesmo entre as nações que não o adotam, fazem uso no âmbito das relações internacionais, uma decorrência do caráter globalizante do capitalismo que, neste sentido, unificou o tempo mundial. Mas durante os tempos medievais a configuração da “geopolítica das almas” impedia que a reforma gregoriana ganhasse territórios de maneira rápida e isenta de resistências:

Nos países protestantes a recusa foi mais longa. (...) "Os protestantes, dizia Kepler, preferem antes estar em desacordo com o Sol do que de acordo com o Papa". Os protestantes dos Países Baixos, da Alemanha e da Suíça só por volta de 1700 aceitaram o novo calendário. (...) A Inglaterra e a Suécia só o fizeram em 1752; foi preciso então sacrificar 11 dias, visto que tinham considerado 1700 como bissexto.
Os russos, gregos, turcos e, duma maneira geral, os povos de religião ortodoxa, conservaram o calendário juliano até ao princípio deste século. Como tinham considerado bissextos os anos de 1700, 1800 e 1900, a diferença era já de 13 dias. A URSS adotou o calendário gregoriano em 1918, a Grécia em 1923 e a Turquia em 1926. (MARQUES, 2000)

Mas e a noção de fracionamento do dia que levará a humanidade à criação das concepções de hora, de minuto, de segundo? Ela irá começar aos poucos. Não era a preocupação principal dos primeiros povos que eram agrícolas e em estágio técnico muito rudimentar, o que gerava neles uma percepção de temporalidade muito mais lenta e, portando, uma preocupação com períodos mais longos de tempo. Mas a marcação das horas já dava os primeiros passos com os chamados relógios solares (gnomon) que são baseados na evolução diária das sombras do Sol geradas por um bastão vertical fincado no chão. Além do incômodo de não poder ter certeza das horas em em dias nublados, a imprecisão destes relógios era evidente, pois sabe-se que o Sol, ao longo de um ano, como efeito de a órbita terrestre (e de todos os corpos envolvidos em sistemas orbitais) não ser circular e sim elíptica, fazendo com que a velocidade de translação seja variável (entre 30,29 e 29,29 km/s), o que gera efeitos de atraso e adiantamento dos posições solares no céu ao longo do ano. Tudo isso fora descrito pelo astrônomo alemão Kepler e suas famosas leis. Então, diante desta imprecisão, aos poucos, os relógios evoluíram. O Sol deixa aos poucos de ser o parâmetro através da utilização de instrumentos que utilizavam o escoamento (de líquido como a  Clepsidra e de areia como a ampulheta, datada de 250 d.C, para ficar exemplos de maior fama) e de queima (de velas, no caso camadas mais nobres, e cordas entre os mais humildes) nos tempos medievais tentando encontrar nestes processos alguma regularidade para fins de medição temporal. Destes tipos de relógios, a evolução técnica nos permitiu a confecção  dos relógios mecânicos no século XIV. No século XX passamos pelos de quartzo e chegamos ao atômico de Césio-133. Mas isso é um assunto para uma segunda parte.



Até o final do período histórico conhecido na Europa como Idade Média, as maiores preocupações com o tempo estavam na busca de um calendário coerente. Isso se explica pelos ritmos dados pela atividade econômica baseada na agricultura ainda muito rudimentar e dependente dos ritmos naturais, a um modo de produção pré-capitalista e a um predomínio cultural da Igreja católica que ditava um calendário baseado em datas sagradas.

Os ritmos da vida eram dados pela atividade agrícola diária que dependia da duração do fotoperíodo (período com luz solar) ou então dos sinos da igreja. No mundo medieval o tempo era ditado pelas obrigações litúrgicas e de trabalho, estas últimas impostas pela natureza. É um tempo impreciso e a-racional. Não muito diferente dos tempos pretéritos em localidades mais distantes da vida urbana e comercial. Não podemos esquecer que esse tipo de vivencia espacial ainda existe, inclusive em muitos rincões brasileiros.

Com o renascimento comercial, surge então, a partir da burguesia, a noção de que tempo é dinheiro e que, por isso mesmo, deve ser mensurável, racionalizado e bem administrado para melhor gerir uma sem número de atividades ligadas ao nascimento do capitalismo: comércio, navegação, operações bancárias, fabris, datas contratuais, o próprio trabalho que passa a ser dotado de um ritmo, etc.

Álvaro Rodrigo Pinto recupera em seu trabalho que a burguesia usava o período da tarde para o ócio, já que no período da manhã ela negava o ócio, ou seja, realizava seus negócios. É uma noção de tempo que se opunha àquela noção medieval católica de uma temporalidade ligada à bíblica e a um mundo rural isolado e que, ao colocar o tempo como pertencente a Deus, tornava o empréstimo a juros, conhecido como usura, como um pecado na medida em que essa usura era considerada uma venda do tempo divino já que o usuário lucra com o tempo que outra pessoa gastou para lhe fazer render os juros devidos.

O afloramento desta nova noção de tempo culmina com a criação do relógio mecânico no século XIV que significou uma revolução na relação entre o homem e a sua organização no que diz respeito em relação aos ritmos naturais, o que contribuiu para o desenvolvimento de uma mentalidade quantitativa em relação à vida. Esta mesma mentalidade é geratriz de uma rigidez disciplinar amplamente utilizada na extração de mais-valia e na organização individual dos homens que passam assim, a se tornarem uma propriedade muito mais do tempo do que do próprio espaço natural. Está em emergência uma nova forma de as sociedades se organizarem e pensarem que pode ser chamada de mecanicista pela necessidade de ver o tempo como tendo que ser a todo momento medido, visto de maneira sempre linear e progressiva, o que é acentuado pelos periódicos.
Porém, os primeiros relógios terão uma importância muito mais de ornamentação e simbolismo já que não eram lá muito precisos. Relógios eram motivo de orgulho e status aos habitantes das cidades que os possuíssem ou à certos homens que tinham sua propriedade, embora não havia a noção de hora nacional que irá nascer aos poucos durante a idade moderna. Cada cidade passa a ter a sua hora legal. Então aos poucos, com relógios mais confiáveis, o homem não mais precisará olhar a posição dos astros celestes na medição do tempo.
As grandes navegações trarão a necessidade de ser calculada a posição das embarcações em alto mar. O cálculo das latitudes era conseguido com certa precisão, mas o das longitudes dependeu a criação do relógio mais preciso só inventado no século XVIII por um inglês.

Aguarde... em alguns dias colocarei a segunda parte.



bibliografia principal

- HISTÓRIA, TEMPO E HISTÓRIA. Maria Inez Turazzi e Carmen Teresa Gabriel. Projeto Arariba.
- Origem e evolução do nosso calendário. Manuel Nunes Marques (http://www.mat.uc.pt/~helios/Mestre/H01orige.htm)

- Da Usura ao Desperdício. O Tempo de um Pecado. Álvaro Rodrigues Pinto. Revista da Faculdade de Letras 285, Porto, III Série, vol. 7, 2006, pp. 285-290.



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